(…) Crescido.

Forte. Saudável. Perfeito. Eu não tenho motivos para reclamar. A morbidez dessa felicidade de fantoches me abomina. É pior do que uma mentira, é uma mentira real. Eu queria ter pelo menos o indício de que já fui infeliz. Eu precisava de provas. Era mais que um desabafo, era a necessidade de manter-me vivo e lúcido. O meu desabafo era a voz que nunca escutei. A voz que imagino como é. A voz que sai do espelho, direto da boca do homem sem rosto e sem documento, que só tem passado e nada mais. Eu só queria alguém que sentasse ao meu lado e dissesse que tudo bem não ser perfeito por dentro. Tudo bem, não chore, vai passar. Você é só um garoto triste. Eu deixo você crescer. Eu faço os seus ossos pararem de doer. Eu deixo você sair dessa bolha de proteção do mundo e chorar a sua dor. Eu deixo você voltar no tempo por um segundo, fechar os olhos e dizer adeus ao seu primeiro amor. Eu quero que você se despeça, devagar, que aproveite os beijos na bochecha, que nade no riacho pela última vez. Quero que você leia o seu livro de dez páginas saboreando cada ilustração. Que você perdoe as baleias por serem tão grandes. Que você afaste os móveis da sala pela última vez. Tudo bem se você não quiser pular do ninho agora. Você nunca esteve preparado, mas eu sei que você se esforçou. Eu só quero alguém que diga que eu preciso cortar o cabelo. Mas ninguém diz nada. Todo mundo só concorda comigo quando eu digo que o que passou, passou. Que a vida continua, que o meu maior sonho é ser um advogado quando o meu maior sonho é só que alguém entenda o que eu preciso ser. E que por favor, me explique. Alguém que me sirva de apoio e que diga ao mundo que eu não quero falar com ninguém. Que eu não gosto de celular, bebida, festança ou simpatia. Que eu tenho vergonha de existir. Que eu sou só um menino ateu, sem graça, sem casa com direito ao Bolsa-Tristeza que foi deixado na porta de uma felicidade instantânea. (…) Alguém que seja para mim o simples prazer de ser alguém que não foi embora. Ainda. Alguém que não queira escutar a minha voz. Alguém que explique ao resto das pessoas que sou uma pessoa feita de restos e que choro por pouca coisa. Choro, por exemplo, pelo sorriso de um homem mudo. Que gosto de chocolate quente antes de dormir, que acho que a saudade tem os mais belos olhos do mundo, quero alguém que beba o oceano de canudo para que eu não tenha mais medo de gigantes. Alguém que me leve para chorar num mundo distante, porque não há mais cantos nesse mundo onde esteja abandonado o suficiente para ser o que eu sempre fui. Não há dor maior que se acumule no meu coração e faça aquela saudade poder ser transbordada até a última gota. Não há saudade maior do que a saudade que eu sinto dos olhos de saudade. Queria mais fios, mais sangue, mais sentimento de culpa, mais ressentimento, mais despedidas para que respire aliviado novamente. Para que eu consiga dormir uma noite sem lágrimas. Esse mundo perfeito dói. Esse mundo de mentira que não é de mentira dói profundamente. Eu queria ter forças para sugar a última gota de chocolate que sobrou na minha caneca azul preferida. Meu Deus, quando foi que eu perdi as minhas cores? Quando foi que meus textos encheram-se de interrogações? Aliás, quando é que eu comecei a escrever? Quando foi mesmo que eu comecei a ser feliz? Eu, honestamente, tenho muita coisa pra lembrar. Tenho que lembrar que sou perfeito, que sou só passado, que os exames de cardiologia deram em nada de novo. Eu sou um menino de muita sorte. Tenho que lembrar que sou um menino de muita sorte. Que não tenho motivos para ser o que sou. Triste, vazio, perdido. Mas quando a noite acaba, meu bem, quando a noite acaba e as quatro paredes do quarto adormecem, eu sempre acabo assim. Sozinho.


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